quarta-feira, 12 de setembro de 2012

"Eu... e Agostinho", recordar o Tour 1969

Gostar de ciclismo é algo natural para mim. Nunca tive que pedir a ninguém para mudar de canal para ver o pelotão na televisão ou de pedir boleia para o poder ver pessoalmente. Ainda eu não gatinhava e já os meus pais me levavam com eles a ver a Volta ao Algarve ou a Volta a Portugal (sem que eu me lembro, claro está). Também sempre o tive na televisão, fosse porque alguém queria ver as paisagens, porque o meu pai não perdia as escaladas aos cumes do Tour ou porque um avô gostava de passar as tardes a ver a Vuelta (que então dava num dos canais RTP) enquanto recordava o Joaquim Agostinho e o Fausto Coppi. Talvez por isso eu seja um apaixonado do ciclismo e tenha adorado este livro do qual vou partilhar aqui alguns excertos.

Por todas estas razões, custa-me ver como a maioria dos jornalistas de agora banaliza o ciclismo e os feitos dos ciclistas. «Fulano e Beltrano fugiram ao km X, tiveram uma vantagem máxima de Y minutos, foram alcançados a Z km da meta e no final venceu Sicrano». O ciclismo é mais do que isso e este livro é um bom exemplo, como se verá nos excertos que continuarei a publicar nos próximos tempos. Uma espécie de mini-série sobre a Volta a França de 1969 e Joaquim Agostinho.

O livro "Eu... e Agostinho" foi escrito por Amadeu José de Freitas, jornalista do Diário de Lisboa, em 69, ano em que Joaquim Agostinho se estreou na Volta a França. Poucas pessoas tinham televisão nas suas casas e canais por cabo era mesmo coisa de imaginação, pelo que os jornais tinham muito maior importância do que têm hoje (apesar de ainda terem muita e ainda bem que assim é).

Claro que em 69 o ciclismo não era organizado como nos dias de hoje e disso irei falando sempre que necessário. Com estas publicações pretendo dar a conhecer um pouco mais a história do ciclismo e, sobretudo, o melhor ciclista que já nasceu neste país. Os excertos serão aqui apresentados tal e como como estão no livro, que certamente será difícil de encontrar nos dias de hojeAlguns acentos serão "estranhos", algumas aspas também, mas era assim que se escrevia na época e não o vou alterar.

Hoje ainda não irei directamente a Agostinho. Ficamo-nos pela explicação da ida de Amadeu José de Freitas ao Tour e pela sua fantástica descrição da prova. Este livro contém uma narração espectacular, como eu nunca tinha lido, mas por várias vezes o autor se lamenta de não conseguir expressar tudo o que sente e dar aos feitos a dimensão que neles vê. Quarenta e três anos depois, com trabalhos de muito menor qualidade alguns jornalistas sentem-se a perfeição em pessoa. É de louvar esta humildade.
O «Diário de Lisboa» deu-me a oportunidade - e eu aproveitei-a socorrendo-me, ainda, da boa amizade e compreensão de Raposo de Magalhães, administrador do Banco Pinto & Sotto Mayor e Mário Medeiros, delegado em Lisboa da T.A.P. E fui, então, um jornalista feliz e mais realizado, pois fiz a segunda das três reportagens que sempre desejei escrever: um Campeonato do Mundo de Futebol e uma «Volta à França» - falta-me, agora, os «Jogos Olímpicos». 
Dei a esta, sobre o «Tour», tudo aquilo - e bem pouco é, infelizmente - que tenho para dar: entusiasmo, dedicação, sacrifício, febre de oferecer a notícia, de contar, de trazer o leitor até mim e de eu chegar até ele... Não o consegui na totalidade, claro está. Mas tentei-o.  
Impressionando pelo «Tour» e pela figura de Agostinho, sonhei este livro - simples e quase anónimo como tem de o ser quando nasce de um jornalista do acontecimento. Muito ficou nas páginas do «Diário de Lisboa», mas também muito de novo lhe introduzi para lhe dar unidade, sugestão e ordem.  
E parto para esta «aventura» como Agostinho partiu para o «Tour» - acredito na sorte.

É feito um resumo da história da bicicleta e das primeiras provas, como um Toulouse-Caraman e um Paris-Ruão (Rouen em francês), ambos em 1869. Paris-Ruão, com 123 km e aberta a homens e mulheres, é considerada a primeira corrida de ciclismo, mas no livro existe a tal referência ao Toulouse-Caraman três meses mais cedo. Não cabe a mim resolver o mistério.

Antes disso é feita uma apresentação do Tour e essa não tem mistério.
O «Tour» não tem explicação - é assim mesmo e, pronto, está tudo dito. O seu sortilégio sente-se, apalpa-se, escreve-se, vive-se - não se diz que é deste modo, por mais isto e mais aquilo. Existe - forte, aglutinante, belo, espectacular, feito de dor, esforço, sangue. Uma poesia do músculo que tem o lado patético do drama - quando já não há forças, quando o raciocínio se embota, quando as ideias não se coordenam, quando os braços e as pernas já não respondem à esgotada chamada da vontade. 
O «Tour» tem isto e tem mais: tem a França toda na estrada a ver passar os seus gigantes, tem um circo no caminho e à chegada tem música, tem palmas. E tem sempre, em primeiro plano, a luta desesperada do homem contra a rudeza do caminho. 
Parece um fito inútil e ridículo - querer uma «camisola amarela» no corpo chupado e ferido, ser o primeiro no alto do Tourmalet, descer mais depressa a serpente dos Alpes. 
Mas, afinal, tudo representa a eterna luta do homem contra o mito e o inacessível - o desejo de ser maior, de crescer, de ganhar a «espora» de honra, a que define o eleito e o faz sair do anonimato. De qualquer forma é um modo de luta - digna, esforçada e leal. E com um cheiro a vida que penetra na moldura do «Tour» e a ultrapassa - chegando a nós todos e ao povo que vem ver e aplaudir. Sortilégio do «Tour» - sem definição. Mas tão verdadeiro, como a verdadeira verdade, do espectáculo do músculo. 
Eu não fugi ao sortilégio - e honestamente o confesso, não me dei nada mal com isso...
Era isto o Tour para Amadeu José de Freitas, há mais de quarenta anos atrás. Com as naturais alterações que aconteceram, com o Tour a receber gente de cada vez mais países, é de uma forma muito parecida que vejo o Tour, o ciclismo e os ciclistas.

Por hoje, ficamos por aqui, mas com a promessa de que esta mini-série pelo Tour 69 e Agostinho continuará depois dos Mundiais.


A Frimatic-De Gribaldy-Viva de 1969, com Agostinho à direita

2 comentários:

  1. Que pena eu tenho de não ter nascido nesta altura para conhecer como era o Tour! Mas um dia espero poder sentir o que é ver um Tour.Adorei o artigo e espero pela sua continuação!

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  2. Adorei ler a forma como o Tour é descrito pelo SENHOR José Amadeu de Freitas. Nunca vi descrito de forma tão exemplar e sentida o que é o ciclismo, o que nos leva a gostar de acompanhar ou até mesmo praticar esta modalidade nem que seja de forma amadora, como acontece no meu caso. É a luta pela superação que fascina, que motiva os ciclistas e os faz querer mais e mais. Não acredito que nenhum dos ciclistas de top esteja no patamar que está apenas pelo dinheiro ou por querer ser famoso ao contrario do que muitas vezes acontece, sem querer entrar em comparações, no futebol. É preciso vontade, ambição e capacidade de sofrimento, mas um sofrimento muito gratificante quando se cumpre um objetivo ou até mesmo quando apesar de falharmos a nossa meta, temos a certeza que demos tudo e fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para o tentar ralizar.

    Bem, já me estou a alongar muito.

    Mal posso esperar pela continuação deste excelente artigo :)

    Abraço

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